O que há de tão especial na bebida alcoólica obtida com a fermentação do arroz, que comparativamente ganha de longe até mesmo do vinho, no quesito tradição? Essa e outras perguntas já devem ter passado na cabeça de muita gente quando se ouve falar na milenar bebida japonesa: o saquê.
Famosa por estrelar diversos filmes ao lado celebridades de Holywood, como no recente “ O Último Samurai”, a bebida um dia já foi considerada alimento. Em meados do século V a.C., no período Nara, os produtores não conheciam técnicas apuradas de fermentação, e o saquê era feito com pouco álcool e água, em uma combinação que mais lembrava uma porção de mingau do que outra coisa... Nessa época, “comia-se” o saquê de hachi, direto de uma tigela. Na verdade, tudo era o resultado de uma receita com pormenores um tanto repulsivos: mascava-se o arroz para fermentá-lo com a saliva e depois cuspia-se em tachos para só então iniciar o preparo da bebida. Esse método era chamado de “Kuchikami no sake”, ou saquê mastigado na boca. Já na província de Hokkaido e em áreas rurais de Okinawa, os fãs da bebida encontraram outras maneiras de “purificar” esse processo, determinando que apenas as jovens mulheres virgens poderiam mastigar o arroz, pois elas eram consideradas representantes dos deuses aqui na terra. Logo não demorou, e a bebida produzida por elas foi batizada de “bijinshu”, saquê de mulher bonita. E por incrível que pareça, essa prática sobreviveu até poucos séculos, mesmo após a adoção de técnicas mais modernas de fermentação.
Diz a lenda que a fermentação da bebida foi descoberta por acaso: “Certo dia, um cidadão desleixado esqueceu de tampar um tacho de arroz que cozinhará e o arroz acabou mofando. E como ele era realmente desleixado, também o esqueceu de jogar fora e só depois de alguns dias “notou” que havia ocorrido uma fermentação e o arroz então, transformara-se em uma deliciosa bebida, na verdade mais pastosa do que líquida. A total falta de cuidado do cidadão, acabou se transformando então, em um método e os produtores descobriram que o fungo que mofara o arroz era o responsável pela transformação do amido em glicose e fermento. Logo, o fungo ganhou nome “kamutachi” e não demorou muito para que os produtores divulgassem que a bebida era “produzida pelos deuses”.
Até o século passado, o saquê ainda era produzido artesanalmente, onde o arroz era primeiro lavado e depois colocado em tinas (vasos gigantes) para cozinhar. E após esta etapa de fermentação, a pasta resultante era ralada e só então, misturada manualmente até chegar ao produto final. No entanto, atualmente os grandes fabricantes japoneses ainda utilizam métodos que lembram esse antigo processo. E hoje, o saquê é feito em grande escala industrial e não há mais vestígios do romantismo do passado. Pelas leis do país, a produção caseira da bebida é proibida.
E como os tempos mudam, o “kamutachi” também mudou de nome e hoje é conhecido como “koji”. E é ele quem determina o aroma e o gosto do saquê, uma difícil tarefa para os “tojis”, pois eles que escolhem o fungo que garantirá um sabor ainda mais especial à bebida. O que permanece inabalável, no entanto, é a popularidade do ritual.
Beber saquê é um ritual no país, e existem várias razões pelas quais a bebida é apreciada, que vão muito além do paladar, sede ou disposição para encher a cara. Segundo a tradição, bebe-se saquê para eliminar as preocupações e prolongar a vida, e isto por si só, vale qualquer dose a mais. Pega até mal chamar de bêbado quem toma saquê de forma exagerada e sai cambaleando de madrugada pelas ruas das cidades japonesas. Inebriado talvez fosse a designação correta, uma vez que os efeitos da bebida transformam seus apreciadores em cantores, galanteadores e seresteiros ao luar nas noites nipônicas.
No Japão, costumam-se dizer que o saquê é o melhor companheiro na solidão. Só não se pode toma-lo em qualquer copo ou em qualquer ocasião. Bebe-se em grandes comemorações como no Ano Novo e nas cerimônias xintoístas de casamento, em encontros românticos e também na falta de um pretexto feliz ou dor de cotovelo.
Na maioria das ocasiões, o saquê é servido quente em uma temperatura que varia entre 40º e 55º C. Mas ele também pode ser tomado gelado ou misturado a outras bebidas e sucos, originando coquetéis muito interessantes. A maneira mais tradicional de servi-lo é em xícaras quadradas de madeira, chamadas “masu”, que conferem à bebida um suave sabor amadeirado. Nesse caso, sempre é servido frio com temperatura variando entre 20º e 40º C, uma vez que o saquê quente absorveria o gosto da madeira. Em muitos lugares, sugerem-se ainda que coloquem uma pitada de sal no canto do masu, um certo estilo adotado pelos jovens.
Rituais à parte, os efeitos “inebriantes” do saquê vão muito além das histórias fantásticas da antiguidade.
O saquê é a bebida com mais alta porcentagem de álcool entre os fermentados do mundo. Sem ser diluído, chega a marca de 20% de teor alcoólico, enquanto uma cerveja não passa de 5% e o vinho de 12%. Mesmo assim, com menos álcool, ambos estão ganhando a queda-de-braço com o saquê no mercado japonês. Em 1872, quando a bebida era um dos principais produtos da economia do país, havia 30 mil fabricantes, hoje o numero não chega a 10% do total. São cerca de 2.300 produtores que fabricam anualmente, pouco menos que um bilhão de litros de saquê. O que não quer dizer que a bebida está em declínio, pelo contrário, alguns tipos de saquê atingem cifras absurdas, ganhando o status de bebida, como o saquê produzido na província de Hyogo, considerado o melhor do país. Uma simples garrafa pode custar até 300 mil ienes. E mesmo que a cerveja e o vinho continuem roubando espaço do saquê no Japão, uma coisa é certa: ele está na lista dos principais persongens da história do país e os japoneses não o deixaram de beber, pelo menos em comemoração a isso. E como beber saquê no Japão, é um ritual milenar e os excessos são jusificados por milhares de anos de história, o modo mais simples de se desculpar por qualquer estrago provocado em uma noite de bebedeira no Japão, é dizendo “Eu estava bebendo saquê...”. e o perdão é praticamente certo, seja qual for o dano causado.
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