sábado, 16 de julho de 2011

Entrevista Com a Chef Roberta Sudbrack


A mulher que ficou famosa por inaugurar o cargo de chef de cozinha do Palácio da Alvorada, nos fala de sua trajetória e da importância da matéria-prima em sua cozinha
 
Ela queria ser veterinária. Criada em Brasília, gaúcha de nascimento e carioca de coração, a moça juntou dinheiro vendendo cachorro quente e voou para os EUA em busca do seu sonho. Mal sabia ela que seu destino estava traçado e que quando a maré muda pode ser para valer. Como toda pessoa inteligente, ela se deixou ser levada pela vida, mas manteve o pulso firme e não se dispersou do seu mais novo objetivo: cozinhar, cozinhar, cozinhar. Com obstinação, garra e talento subiu degrau por degrau até se tornar uma das maiores chefs do Brasil. A paixão pelos animais continua, mas a satisfação de transformar almas através de seus pratos falou mais alto. Com vocês, Roberta Sudbrack.
Você começou sua carreira com um trailer de cachorro-quente em Brasília. Conte-nos um pouco da sua experiência nesta fase.
  • Na verdade comecei com uma carrocinha daquelas que a gente empurra ladeira abaixo. O trailer veio depois, com o sucesso do negócio. Foi um momento difícil na minha vida e também de muito aprendizado. Ao invés de colocar a mão na cara e chorar, como diz a minha avó, resolvi arregaçar as mangas e cozinhar. Eu enlouquecia o padeiro para chegar ao ponto exato do pão que eu desejava, checava a textura, a maciez e comprava duas fornadas por dia. A salsicha era artesanal e confeccionada especialmente para mim em uma pequena fábrica no interior do Rio Grande do Sul. E o molho era preparado todos os dias pela minha avó com tomates frescos que eu comprava de madrugada no entreposto de Brasília. Fazíamos já naquela época uma cozinha extremamente fresca e artesanal.
 
O que você trouxe desta época para sua a cozinha que faz hoje?
  • O cuidado com os detalhes, com a qualidade e a procedência da matéria-prima e a convicção de que o artesanato é indispensável na gastronomia, pelo menos na minha.
 
Fale um pouco da sua trajetória desde esse período até assumir a cozinha do Palácio do Planalto.
  • Depois de um tempo vendendo cachorro quente resolvi que era hora de voltar a estudar. O negócio do cachorro-quente foi um sucesso e me possibilitou juntar dinheiro para viajar para os USA e cursar a faculdade de veterinária que até então eu imaginava ser o meu sonho. Nessa época fui morar sozinha e tive que aprender a cozinhar para mim mesma. No primeiro dia em que toquei um ingrediente foi definitivo. Descobri finalmente o que tinha vindo fazer no mundo! A partir daí a minha obstinação falou mais alto e eu decidi que custasse o que custasse eu seria uma cozinheira.
 
 
Qual foi o seu maior medo quando recebeu o convite para comandar a cozinha da Presidência da República?
  • Nenhum. Eu tinha certeza de que seria um trabalho difícil, mas absolutamente grandioso. Precisamos diariamente do desafio para estar sempre nos superando e buscando o impossível e a magnitude das coisas.
 
Você pode levar sua equipe para trabalhar no Palácio com você?
  • Ninguém! Só consegui autorização para levar as minhas facas!
 
Como foi isso?
  • Na verdade era a primeira vez na história do Brasil que a residência do Presidente da República teria a figura do chef de cozinha. Era tudo muito novo, todo mundo tinha muito receio. Menos eu.
 
Você sentiu algum preconceito da brigada pelo fato de ter uma mulher no comando?
  • É claro que não foi das tarefas mais fáceis, mas foi um desafio muito interessante. Aprendi muito com a disciplina e a hierarquia dos militares, que afinal são fundamentais numa brigada de cozinha. Sempre fui respeitada e me fiz respeitar também, porque sem o respeito não se lidera. Eles tiveram que reaprender o bê-á-bá da cozinha, desde o arroz com feijão até o confit de pato, técnica que eles nunca tinham ouvido falar. Mas quando os resultados, não só da capacitação técnica da brigada, mas da organização, do controle da cozinha e da própria repercussão do trabalho começaram a aparecer, foi muito gratificante para todos nós.
 
Como é ser autodidata num momento em que as escolas de gastronomia pipocam Brasil e mundo afora?
  • O autodidatismo não é o caminho mais fácil, requer muito mais determinação e paciência. No meu caso eu não tive escolha, porque simplesmente não tinha condições de pagar um curso técnico. Mas hoje quando me perguntam sobre isso eu só tenho uma opinião: é claro que o melhor caminho é o das escolas. Apesar disso, acredito que ainda possamos melhorar muito o nível dessa discussão e aprimorar essas etapas se os chefs e as faculdades trabalharem mais próximos. Às vezes eu tenho um estagiário de nível superior na minha cozinha que não sabe nem para onde corre na hora do serviço e no terceiro dia ele já está se questionando se é aquilo mesmo o que ele quer da vida. Claro, o que venderam para ele foi um conto de fadas e a realidade é bem diferente.

Como desenvolveu sua técnica de trabalho?
    Quando eu decidi que era na cozinha que eu queria passar o resto da minha vida, tracei estratégias para conseguir alcançar esse ideal. Mesmo sem saber se iria dar certo, essa é a grande dica para não se abandonar um sonho. Não sabia exatamente por onde começar, mas não tinha dinheiro para pagar um curso técnico. Comecei então a escrever para várias escolas de culinária e pedir o programa de treinamento delas. Depois disso criei o meu programa com base nos dados que recebi. Se ali dizia que num determinado dia da semana os alunos passariam duas horas cortando verduras e legumes para ganhar agilidade com as facas, eu passava seis! Assim eu passei pelo menos três anos trancada na minha cozinha enfrentando uma rotina pesada de prática e aprimoramento de coisas que eu nunca havia tido contato na vida. É um caminho mais longo e por isso mesmo tem que ser trilhado com muita mais persistência e determinação.
     
    E o talento de professora, já que suas aulas são as mais badaladas do Rio de Janeiro?
    • Também é uma coisa muito particular, mas nesse caso eu me divirto à beça! Eu sou muito didática nas minhas aulas porque sempre senti falta disso quando estava buscando o meu aprendizado. Gosto de falar sobre as características das coisas, sobre as possibilidades dos ingredientes, das reações entre eles e depois mostrar como tudo funciona na prática. Acredito que as minhas ficaram conhecidas porque eu tento explorar todos esses aspectos e também incentivar cada aluno a ser ele mesmo, se soltar, extravasar!
     
    Você está se tornando conhecida também pela sua pesquisa em cima de ingredientes brasileiros. Como tem sido este mergulho?
    • Isso é um assunto sério na minha vida, nunca pensei que me tornaria uma estudiosa! Essa pesquisa começou na época em que chefiei a cozinha do Palácio da Alvorada, era uma maneira de mostrar a grandiosidade da nossa terra, dos nossos artesãos, da nossa história culinária através dos pratos que servíamos para os chefes de Estado. E eu não sei fazer nada sem me aprofundar, o mergulho faz parte da minha vida! Hoje em dia eu continuo essa pesquisa diariamente dentro da minha cozinha. Todo ano elegemos um ingrediente para pesquisar, vasculhar e nos aprofundarmos até entender tudo, ou pelo menos quase tudo, em relação à sua estrutura, ao seu comportamento em diversas situações, as suas possibilidades e as novas dimensões que podemos alcançar. Não estou interessada em começar a trabalhar com um quiabo e terminar com pó de alguma coisa, ou espuma de outra. Eu quero a dignidade do quiabo impressa nele e no meu trabalho.
     
    E foi justamente este trabalho que representou a gastronomia brasileira nos festivais da Espanha e de Cannes, ambos em 2008. Você sentiu uma boa receptividade por parte do povo europeu?
    • Foi incrível nos dois casos. Na Espanha fomos aplaudidos de pé por mais de 500 pessoas, uma emoção sem igual. E na França, o berço da gastronomia mundial, fomos recebidos como chefes de Estado. O interesse é imenso e o respeito pelo trabalho que a gente vem desenvolvendo também. Eu sempre viajo para essas apresentações imbuída de um espírito e um orgulho quase olímpico, vou realmente com a missão de representar o Brasil.
    Como enxerga a nova onda da gastronomia espanhola?
    • Acho válido o movimento, porque instigou a criação, mexeu com as estruturas e isso sempre é muito bom, entre outras coisas possibilita mudanças. A grande contribuição, em minha opinião, foi a inclusão da reflexão como ingrediente principal. Pensar é fundamental na cozinha, sobretudo na gastronomia moderna. Mas acredito que em alguns anos o equilíbrio será a grande tendência. Essa loucura toda acabou mexendo muito com os brios dos profissionais e todo mundo quer criar algo novo que chame mais atenção do que uma boa carne assada. Aí o conceito de moderno se embaralha e acaba não chegando a lugar nenhum. Sobretudo porque no final o que todo mundo quer é uma boa carne assada! Acho vai sobrar de tudo isso um aprendizado enorme e um amadurecimento que certamente vai elevar o nível da gastronomia e criar parâmetros, o que é imprescindível para o crescimento.
     
    Quais são suas referências gastronômicas?
    • São as mesas fartas de Minas Gerais. O calor dos ensopados, dos assados, do tacho de cobre que faz a goiabada. São os ingredientes do nosso dia-a-dia que as nossas avós preparam com maestria e sabedoria. O arroz branco e soltinho da minha avó! O cheiro do dendê nas ruas de Salvador. As cucas, os sagus e o arroz de carreteiro no Rio Grande do Sul e a importância do ritual de sentar-se à mesa que ainda reina por lá. São também os chefs franceses que desembarcaram por aqui quando a gente ainda engatinhava nessa matéria, sobretudo o mestre Claude Troisgros, que nos ensinou a valorizar todos esses pequenos tesouros com os quais damos de cara diariamente.
     
    E esse projeto em que, uma vez por semana, você serve um cardápio a preços mais acessíveis, no seu restaurante?
    • Esse é um caso de amor. Tem sido a uma das coisas mais gratificantes da minha vida. Tem a ver com a maneira como eu encaro hoje em dia a gastronomia. Eu acredito que a palavra mais moderna hoje na gastronomia não é mais espuma, é acessibilidade. Sinto isso muito claro quando viajo para fora do Brasil, existe uma preocupação que está implícita em movimentos como o da “Bistronomie”, de se encontrar uma maneira de trabalhar com a mesma qualidade, de manter o ritual e praticar uma cozinha autoral para um número maior de pessoas. A boa cozinha não pode mais estar aprisionada a quatro paredes inacessíveis, a lugares que mais parecem um palácio do que um restaurante. A origem da palavra restaurante tem a ver com restaurar, aconchegar e receber. Em minha opinião, a comida tem que ser o centro de todas as atenções e o ato de receber num restaurante a extensão de como receberíamos na nossa própria casa. É um grande desafio que estou disposta a enfrentar no próximo ano com muito mais atitude.

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